É possível implementar a sinodalidade nas paróquias?

Fabio Antunes do Nascimento Doutorando em Teologia pelo CEBITEPAL – CELAM, Bogotá na Colombia, Mestre em Teologia Pastoral pelo CEBITEPAL – CELAM, presbítero e Coordenador Diocesano de Pastoral da Diocese de Coxim - MS, Professor de Teologia Pastoral na UCDB, fabiopjms@hotmail.com

Introdução

O Sínodo dos bispos é um fruto concreto do Concílio Vaticano II criado pelo Papa Paulo VI em 1965 pelo Motu Proprio APOSTOLICA SOLLICITUDO: ISTITUZIONE DEL SINODO DEI VESCOVI PER LA CHIESA UNIVERSALE (Instituição do Sínodo dos Bispos para a Igreja Universal), colaborou no desenvolvimento e aplicação dos documentos conciliares. Desde o início do seu ministério, Papa Francisco tem provocado os Sínodos a adentrarem em temas importantes da vida da Igreja, como por exemplo: família, jovens, Amazônia etc. Desse modo, ele tem valorizado esse organismo e integrado outros participantes que não sejam somente os bispos delegados ordinários. Agora, Papa Francisco propõe um Sínodo acerca da sinodalidade como categoria constitutiva em seu pontificado: ora por meio de gestos como do grupo permanente de cardeais que ajudam no governo da Igreja; ora por meio de eventos como os próprios sínodos e a publicação da Comissão Teológica Internacional (CTI) sobre a sinodalidade.

Da expectativa inicial que se tinha de que Francisco faria uma reforma da Igreja, desde uma profunda mudança anunciada da Cúria Romana, mas ainda não divulgada, até uma certa frustração dos mais afoitos, após as exortações pós-sinodais, o certo é que, em pouco mais de oito anos, Francisco promoveu vários atos que renovam e desencadeiam à renovação esperada na Igreja. Na esteira, desse movimento, a Igreja caminha para a realização de um Sínodo que pode dar um sentido mais abrangente para a categoria teológico-pastoral da sinodalidade.

Assim, podemos dizer que o pontificado de Francisco tem promovido aquilo que a CTI chama de gradualidade da sinodalidade – estilo, eventos e organismos –, que converge para a realização de um Sínodo sobre a sinodalidade. Com efeito, a sinodalidade avançou vigorosamente em dois âmbitos, a saber: na reflexão teológica e no Magistério do Papa Francisco. Também somam a estes âmbitos os eventos nos quais se promovem o estilo sinodal, como os dois últimos sínodos, a saber: o realizado sobre a Amazônia e a Assembleia Eclesial, programada para novembro de 2021.

Grande desafio no processo de implementação da sinodalidade na vida da Igreja é conciliar essa identidade eclesial a estrutura da paróquia. No imaginário eclesial a paróquia “é a figura da Igreja e sua imagem mais pública. Para a maioria dos batizados é o lugar e o âmbito em que o eclesial se faz acessível e experimentável” (ISP, 2018). Nossa questão fundamental é encontrar aquela “grande plasticidade”, que o papa indica para a paróquia, quando afirma que ela “não é uma estrutura caduca […], se ela for capaz de se reformar e adaptar constantemente” (EG 28, 2013).

Nosso objetivo é colaborar na busca dessa plasticidade, assim como, indicar caminhos que podem iniciar, sem drasticamente pensar numa extinção da paróquia, nem pretensiosamente propor um ato pontual que por si só transforme por completo a paróquia. Pensamos em processos que iniciados vão progressivamente se articulando e ganhando formas, como sugere a CTI: criar eventos, organismo e estilo sinodal.

Para tanto, pensamos que é possível desencadear o processo de “sinodalização” com o reconhecimento das Comunidades Eclesiais Missionárias e a efetivação dos Conselhos Pastoral e Econômico para governança na paróquia. Ademais, superar o centralismo da paróquia, configurando-a como a comunidade de comunidades e, ao mesmo tempo, promover o protagonismo dos leigos vencendo o clericalismo que são desafios enormes e que exigem um processo de conversão pastoral.

Pela descrição de como o termo sinodalidade vem sendo empregado depois do Concílio Ecumênico Vaticano II, principalmente a partir de seus documentos oficiais, podemos reconhecer a evolução que essa categoria vem sofrendo com o passar dos anos. Porque mesmo que não se trate explicitamente de sinodalidade, o Magistério dos Papas, as Conferências Episcopais e a reflexão de teólogos têm criado condições para o crescimento dessa esfera. Assim, juntos nesse caminho, queremos colaborar de forma qualitativa no desenvolvimento da sinodalidade na vida da Igreja, com a revisão de textos que contribuem para esse momento eclesial paradigmático do sínodo sobre a sinodalidade, em especial, de como implementar esse estilo na estrutura da paróquia.

A evolução da categoria sinodalidade

Por ocasião dos cinquenta anos da instituição do Sínodo dos bispos, pelo Papa São Paulo VI, o Papa Francisco definiu a sinodalidade assim: a sinodalidade, como dimensão constitutiva da Igreja, oferece-nos o quadro interpretativo mais apropriado para compreender o próprio ministério hierárquico. Se compreendermos que, como diz São João Crisóstomo, “Igreja e Sínodo são sinônimos”, – pois a Igreja nada mais é do que este ‘caminhar juntos” do Rebanho de Deus pelas sendas da história ao encontro de Cristo Senhor –, entenderemos também que dentro dela ninguém pode ser “elevado” acima dos outros.

Nas palavras de Francisco, a sinodalidade é própria da identidade da Igreja, muito mais que uma estrutura de governança, e sim uma expressão eclesial da comunhão. De maneira concreta a sinodalidade se expressou num importante “órgão de governo pastoral da Igreja” (Paulo VI, 1965) nascido do Concílio Ecumênico Vaticano II, o Sínodo dos bispos. Também em outros níveis da Igreja foram desenvolvidos sínodos diocesanos e nacionais, bem como, as Assembleias e as Conferências dos Episcopados, que atuam em estilo sinodal. Ademais, notadamente, o impulso de Francisco em seu pontificado tem provocado o aprofundamento da sinodalidade, especialmente pela convocação de um Sínodo sobre esse tema, que toda a Igreja está convocada a participar: “Per una Chiesa sinodale: comunione, partecipazione e missione[1] (Sínodo dos Bispos, 2021).

Em 2018 a Comissão Teológica Internacional publicou um estudo intitulado: A Sinodalidade na vida e na missão da Igreja. Esse estudo é um impulso para o aprofundamento dessa categoria que renasce com o Concílio Vaticano II, mas que segundo a CTI “muitos são os passos que faltam ser dados na direção traçada pelo Concílio (CTI 8, 2018). Assim, a sinodalidade não aparece em substituição as imagens da Igreja como Sacramento e Povo de Deus na “Lumen Gentium”, mas uma ferramenta para concretizá-las.

Além dos documentos do Magistério e as reflexões de teólogos, acerca da sinodalidade, vários eventos eclesiais e organismos colaboraram no desenvolvimento do conceito da sinodalidade. Desde o início de seu pontificado Francisco constituiu um conselho de cardeais para auxiliar no projeto da reforma da Cúria Romana. Também os Sínodos dos bispos, celebrados nesse período, foram ampliados pela participação de peritos, convidados, especialmente mulheres, de modo que o Sínodo da Amazônia, por exemplo, destacou-se por essa ampla participação de delegados, e não somente de bispos.

A sinodalidade desponta como uma categoria teológico-pastoral em desenvolvimento, sendo esse processo trilhado em dois sentidos. No primeiro de fundamento bíblico e da Tradição eclesial, para demonstrar que nas fontes do cristianismo o estilo sinodal foi constitutivo. No segundo, o desenvolvimento da sinodalidade, como sugere a CTI, implementando estilo, eventos e organismos sinodais, como indica Papa Francisco: “O caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio” (Francisco, 2017).

As iniciativas de Francisco em diversas áreas como que semeiam a sinodalidade na ampla seara da Igreja. Exemplo disso podemos citar: Scholas Occurrentes[2], Economia de Francisco[3], Piattaforma Laudato Si[4]e o Pacto Educativo Global. Para além, do âmbito eclesial o Papa Francisco tem criado caminhos de diálogo e promovendo a fraternidade de forma sistemática como apresenta em sua última Encíclica Fratelli Tutti, 2020.

 A realidade da paróquia

Na exortação apostólica “Evangelii Gaudium” o Papa Francisco dedicou um capítulo sobre a “crise do compromisso comunitário” (EG, 50-109, 2013). Nesse cenário a paróquia é estrutura onde mais sensivelmente se percebe essa evasão dos féis e a pouca incidência das ações eclesiais. Por definição impera o aspecto estrutural que a paróquia adquiriu ao longo de sua história e que foi se sacralizando até nossos tempos, daí o conceito canônico prevalece: “Paróquia é uma determinada comunidade de fiéis, constituída estavelmente na Igreja particular, e seu cuidado pastoral é confiado ao pároco como a seu pastor próprio, sob a autoridade do Bispo diocesano” (CDC, Cân. 515 § 1º, 1987).

 Mesmo com a força do caráter jurídico em relação a paróquia, não faltaram intentos de reformar, renovar e reconfigurar a paróquia. A estrutura que nasceu no século IV, como presença da Igreja no ambiente rural, progressivamente tornou-se a estrutura mais próxima da maioria dos batizados. Nessa trajetória histórica podemos destacar dois marcos: primeiramente o Concílio de Trento que consolidou a estrutura jurídica, praticamente inalterada até nossos tempos; depois, o Concílio Ecumênico Vaticano II, que ao recuperar o valor da Igreja Particular, se depara com o desafio de implementar uma nova eclesiologia numa estrutura gestada numa consciência eclesial distinta.

Na busca da sinodalidade como apontado acima, a paróquia aparece como um desafio, que se faz necessário um esforço em busca de uma conversão pastoral da paróquia como nos apontou o documento 100 da CNBB – Comunidade de comunidades: Uma nova paróquia. Mesmo com o forte apelo de Aparecida, 2007 pela conversão pastoral, depois de quatorze anos, a realidade da paróquia mudou pouco ou quase nada.

A conversão pastoral da paróquia

Já o documento de Aparecida tinha apontado a necessidade de uma renovação da paróquia, quando afirmou:

“A renovação da paróquia no início do terceiro milênio exige a reformulação de suas estruturas, para que seja uma rede de comunidades e grupos, capazes de articular conseguindo que seus membros se sintam realmente discípulos missionários […]” (DAp, 172, 2007).

Muitos estudos apontam a paróquia como estrutura moldada à realidade rural, que já não alcança todas as demandas da cidade, por se tratar de uma cultura urbana. Nesse sentido, o Papa Francisco critica a autorreferencialidade, que na paróquia parece estabelecer um círculo vicioso, consumindo todas as forças numa “pastoral de conservação”, onde toda a força vital dos membros é gasta na manutenção de “estruturas obsoletas”. Por essa razão, Aparecida ao convocar a Igreja do continente a um processo de conversão pastoral e renovação missionária, indica que esse é um compromisso de todos: “Nenhuma comunidade deve isentar-se de entrar decididamente, com todas as forças, nos processos constantes de renovação missionária e de abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favorecem a transmissão da fé” (DAp 365, 2007).

Com efeito, ao apontar a sinodalidade como um imperativo para a Igreja no terceiro milênio, não estamos pensando em um novo organograma da hierarquia, nem num sistema democrático nos moldes eleitorais. A sinodalidade, antes de tudo, trata-se de uma abertura para caminharmos juntos, de uma expressão da comunhão, que pode gerar novas estruturas eclesiais, mas não se resume a isso. Assim, indicamos alguns tópicos que podem já, pelo Magistério e teologia existentes, serem implementados, não com a pretensão de, por si só, realizar o ideal da sinodalidade, mas ajudar a desencadear processos que favoreçam esse caminho de conversão e comunhão eclesial.

Pároco, clericalismo e autorreferencialidade

O pároco como pastor legítimo da paróquia carrega sobre si uma grande responsabilidade no governo, porém, à medida que as exigências da evangelização crescem mais pesada se torna essa tarefa. Uma consequência desse poder concentrado na figura do pároco é a anomalia eclesial denominada clericalismo, que o Papa Francisco expressa não ser somente dos clérigos, mas ser “um comportamento que diz respeito a todos nós: o clericalismo é uma perversão da Igreja” (Francisco, 2018).

O modelo paroquial que delega a figura do pároco todo o poder decisório, demonstra que a pastoral nas paróquias vem sofrendo um processo de atrofia, fazendo com que as ações eclesiais tenham cada vez menos incidência na vida das pessoas. O pároco é um homem sobrecarregado, a paróquia depende dele para todas as decisões, logo, todo o processo é debilitado. Soma-se a esse modelo de organização as considerações sobre o perfil dos padres de cada época, haja vista que, não faz muito tempo que existiam documentos e textos dos bispos e da CNP preocupados com a entrega dos padres ao trabalho, que negligenciavam momentos de descanso, cuidado pessoal e, até mesmo, se descuidavam da própria saúde. No momento atual, embora faltem documentos mais objetivos sobre o tema, a realidade do clero jovem parece ser outra.

Por seu ordenamento canônico a paróquia favorece o clericalismo, que podemos definir como essa concentração deturpada do poder sobre os clérigos. As consequências são danosas para vida eclesial, visto que, humanamente, o pároco é exigido tanto, ao ponto que concentra tarefas impossíveis para uma única pessoa. Destarte, comunitariamente, a centralização da pastoral dos párocos gera uma perda do compromisso nos membros da paróquia, como apontou o Papa Francisco (EG 102, 2013), afirmando que eles não foram formados para assumir responsabilidades importantes, e quando há a oportunidade, não encontram espaço nas suas Igrejas particulares expressarem e agirem como tais, devido a um excessivo clericalismo que os mantém à margem das escolhas.

A concentração da responsabilidade paroquial sobre o pároco e a perda do compromisso comunitário pelos batizados, faz com que a ação pastoral esteja sempre deficitária. Nesse contexto é impossível pensar em iniciativas, criativas saídas, quando mal se consegue cumprir o que já é existente. Esse quadro gera o que Aparecida descreveu como um ciclo vicioso de “pastoral de mera conservação” (DAp 370, 2007). Isso gera um processo de involução, na qual a comunidade se desfaz, já que o princípio comunitário é caminhar juntos.

Podemos ilustrar esse quadro com a citação do XIII Plano de Evangelização da Diocese de Coxim – MS, que escutou mais mil membros das comunidades. O texto revela as aspirações sonhadas para aquela Igreja Particular:

            Humildade, acolhimento, união, proximidade.

O Bispo seja unido com os Padres; faça mais Visitas Pastorais. Os Padres sejam acolhedores, compassivos, presentes nas pastorais, movimentos e setores, façam visitas aos doentes e idosos, visitem os pobres (e não só os ricos). Sejam menos administradores e mais pastores. As Irmãs sejam presentes nas comunidades e nas famílias; se comuniquem com os mais afastados e necessitados, sejam solidárias e meigas. Todos desejam a presença das Irmãs na própria paróquia. Os LEIGOS pedem mais formação; exigem mais coerência e união. Um pedido especial foi que os Padres fiquem nas paróquias um bom tempo, para dar continuidade às atividades (Diocese de Coxim XIII Plano Diocesano de Evangelização, 2015).

            Por fim, o clericalismo que impõe a pastoral de mera conservação suprime a dimensão missionária, de modo que todo o esforço se volta às estruturas materiais da paróquia. Então, a paróquia torna-se sinônimo de seus templos, salas, salões e equipamentos, normalmente grandes e onerosos, e, sobretudo, o empenho maior já não é depositado sobre a evangelização e a pastoral, mas na administração e na captação de recursos. Outrossim, como numa atitude de autopreservação, a paróquia se fecha em si mesma, a semelhança do clericalismo que se fecha na figura do pároco e do autorreferencialismo em que a comunidade se fecha em si mesma:

“Ninguém constrói o futuro isolando-se, nem contando apenas com as próprias forças, mas reconhecendo-se na verdade de uma comunhão que sempre se abre ao encontro, ao diálogo, à escuta, à ajuda mútua e nos preserva da doença da autorreferencialidade” (Francisco, 2014).

Comunidades Eclesiais Missionárias e Igreja Particular

Como no retrato dos Atos: “Eles eram perseverantes no ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações…” (At 2,42), a comunidade é a expressão mais genuína dos cristãos. As paróquias surgiram posteriormente, mas embora tenham se tornado a estrutura eclesial mais próxima dos batizados, não deveriam anular ou serem tratadas como sinônimo de comunidade. A paróquia não é uma comunidade, ela é uma estrutura eclesial, que deveria articular as várias comunidades existentes em sua extensão.

A eclesiologia do Vaticano II que recuperou a categoria da Igreja Particular, provocou uma reflexão sobre as comunidades. Em nosso continente, por exemplo, esse movimento impulsionou o desenvolvimento das CEBs, que já haviam iniciado antes do Concílio. Não obstante, a Conferência de Medellín como recepção criativa do Concílio caracterizou a comunidade como: “local ou ambiental, que corresponda à realidade de um grupo homogêneo e que tenha uma dimensão tal que permita a convivência pessoal e fraterna entre seus membros” (MD 15,10 1968). Nesse sentido, a comunidade tem tamanho humano, cria vínculos e exige condições de pertencimento.

 Em Puebla, 1979 a consciência das CEBs estava bem consolidada na caminhada das dioceses do continente, por isso, após o número 641 explicar os três substantivos, o documento define que:

“As comunidades eclesiais de base são expressão de amor preferencial da Igreja pelo povo simples; nelas se expressa, valoriza e purifica sua religiosidade e lhe oferece possibilidade concreta de participação na tarefa eclesial e no compromisso de transformar o mundo” (Puebla, 643, 1979).

A caminhada das CEBs desencadeou muitos processos pastorais, marcados pelo protagonismo dos leigos, com ações eclesiais de muito impacto social na perspectiva da promoção humana.

Nos anos de 1990 foi promovida, em nome de uma nova evangelização, principalmente pela suspeita sobre a Teologia da Libertação – base teológica das CEBs – um enfraquecimento das CEBs. Promoveu-se uma “paroquialismo”, privilegiando os novos movimentos como, por exemplo, a Renovação Carismática Católica, que fortaleceu a ideia de autoridade da figura do pároco. Santo Domingo, Conferência do Episcopado, paradigmática, nesse sentido, equiparou esses novos movimentos a altura das comunidades quando apresentou seguinte imagem da paróquia: “A paróquia é comunidade de comunidades e movimentos” (SD 58, 1992).

O enrijecimento da autoridade do pároco, a concentração da vida eclesial na paróquia, especialmente na matriz, e a promoção dos movimentos enfraqueceram a caminhada das comunidades eclesiais. Hoje, as paróquias se encontram debilitadas como sinalizamos acima, implicando cada vez menos pessoas em processos comunitários, de modo que, os números dos últimos sensos e as projeções estáticas demonstram uma queda vertiginosa do número de católicos. Tudo indica que a busca em concentrar e fortalecer a estrutura paroquial, anulando as comunidades de base, debilitou muito as paróquias, ao invés de fortalecê-las como se esperava.

Aparecida 2007 parece ter sido uma luz que se acendeu como um alerta para a Igreja, conforme sintetizou o padre Libânio, numa entrevista sobre a Conferência: “Uma das novidades do texto é a importância que atribui às comunidades e vê nelas o futuro da revitalização da Igreja. Trata-se de um tema que atravessa todo o Documento” (Libânio, 2008). O encontro pessoal com Jesus Cristo é onde nasce o discípulo-missionário, esse encontro acontece na comunidade e funda a comunidade.

O início do pontificado de Papa Francisco marca um impulso decisivo para toda a Igreja o caminho apresentado em Aparecida. Consagra esse chamado a exortação Evangelii Gaudium, na qual, precisamente no nº 24, o Papa aponta os cincos princípios da vida das comunidades dos discípulos missionários: “primeirear”, envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar. A comunidade forma e envia os discípulos missionários, que por sua vez, “é o agente transformador da comunidade, é através da comunidade dos discípulos missionários que se promove a conversão pastoral e a urgente reconfiguração da paróquia” (Fabio, 2019).

A Igreja do Brasil por sua fecunda história com as CEBs e acolhendo os impulsos de Aparecida e do Papa Francisco, produziu diversos estudos e eventos para recuperar o valor da comunidade, na perspectiva de reconfigurar as paróquias. Notadamente o Documento 100 e as novas Diretrizes Gerais para Ação Evangelizadora (DGAE) 2019-2023, expressam as novas aspirações para a paróquia em nosso tempo. Como disse o Papa Francisco: “A paróquia não é uma estrutura caduca; precisamente porque possui uma grande plasticidade, pode assumir formas muito diferentes […]” (EG 28, 2013), e aqui está o desafio que interpela as paróquias no momento.

O Documento 100, 2014 “Comunidade de comunidades: uma nova paróquia” apresenta a conversão pastoral da paróquia, em seus seis capítulos, sinalizando o contexto da realidade cultural que interpela a estrutura da paróquia. Com efeito, no segundo capítulo, interessante notar o apontamento que o Documento faz acerca do como a experiência de Jesus e seus discípulos funda comunidades, identidade genuína do cristianismo. A transição de uma Igreja das casas, perseguida e mártir para uma Igreja com templos, oficial e em expansão, mostra claramente como surgem as paróquias e como evoluem na história, tema próprio do terceiro capítulo.

No quarto capítulo desse Documento encontramos uma fundamentação teológico-pastoral da paróquia, enquanto que, no quinto capítulo temos a sinalização de quem são e como devem atuar os sujeitos da conversão pastoral, que tanto se espera da paróquia. E, finalmente, no sexto capítulo temos proposições pastorais que se esperam a fim de que se possam desencadear o processo de reconfiguração da paróquia em comunidade de comunidades.

Já as novas DGAE 2019-2023, 2019 assume explicitamente o proposito de recuperar o sentido comunitário ao apresentar a categoria da comunidade eclesial missionária. É uma evolução das categorias anteriores, não para excluir ou desconstruir a bagagem eclesial construída até então, mas para incorporar, principalmente a chave missionária, a Igreja em saída. A comunidade é apresentada com a imagem de uma casa, como nas “Domus Eclesiae”, onde as primeiras comunidades cristãs se reuniam. O capítulo primeiro é um convite a aprofundar o olhar dos discípulos em relação ao mundo atual, enquanto o segundo capítulo é um chamado a aprofundar o olhar sobre os próprios discípulos à luz do Mestre Jesus.

A imagem da casa que é a comunidade é estruturada sobre quatro pilares – Palavra, Pão, Caridade e Ação Missionária – que remetem a eixos da pastoral, respectivamente: iniciação à vida cristã e animação bíblica da pastoral; liturgia e espiritualidade; serviço à vida plena; estado permanente de missão. Espera-se recuperar o sentido comunitário e a promover o processo de conversão pastoral, superando as estruturas obsoletas e a pastoral de mera conservação. Segundo as DGAE 2019-2023 a comunidade eclesial missionária que se estrutura sobre esses pilares vai adquirindo a fisionomia da Igreja de Cristo, caracterizada no documento pelas imagens da casa como: lugar do encontro; lugar da ternura; lugar das famílias e lugar de portas sempre abertas.

A recuperação desse sentido da comunidade na vida da Igreja faz que possamos entender o que propõe Papa Francisco ao lançar o sínodo sobre a sinodalidade para toda a Igreja em todas as suas instâncias: “O Sínodo deve começar desde as pequenas comunidades, das pequenas paróquias. Isso requererá paciência, trabalho, deixar o povo falar. A sabedoria do Povo de Deus” (Francisco, 2021). Há na comunidade eclesial esse caráter sacramental, a força do Espírito inspira respostas criativas aos desafios atuais, é preciso abrir-se a escuta do Senhor que fala na e através das comunidades.

Conclusões

Vivemos um momento de escuta e abertura, que como irmãos e irmãs, queremos responder com fidelidade ao mandato do Senhor de ir por todo mundo anunciando o Evangelho. A Assembleia Eclesial e o Sínodo sobre a Sinodalidade, são espaços privilegiado dessa escuta e diálogo. Acreditando que o grande desafio para a implementação de um processo de sinodalidade na Igreja seja conjugar esse estilo de “caminhar juntos” na estrutura paroquial, me aventuro a sugerir alguns tópicos que podem, a meu ver, colaborar nesse caminho.

Reconhecer a Comunidade Eclesial Missionária como unidade fundamental da base eclesial, constituindo um estatuto canônico em relação a paróquia.

Extinguir ou relativizar a figura do Pároco, promovendo o Conselho de Pastoral Paroquial como órgão responsável pelo governo da paróquia.

Estabelecer o Conselho Pastoral Paroquial como organismo obrigatório e deliberativo nas paróquias;

Situar o Conselho de Assuntos Econômicos no organograma paroquial, como subordinado do Conselho Pastoral Paroquial;

Promover a Diocesaneidade”: a Diocese é a Igreja Particular e as paróquias estruturas a serviço, para isso, deve-se promover a caminhada unitária da diocese, notadamente pela adesão incondicional ao Plano de Pastoral e ao Bispo Diocesano;

Importante nesse tempo é a escuta e o diálogo. Todos podemos falar, propor e sonhar, mas, na mesma medida devemos estar abertos a escutar, a acolher e a caminhar juntos. Penso que essas atitudes vão, não somente mudar estruturas e programas, mas poderem, de fato, permitir que Deus fale através de seu povo. Vivamos esses momentos que Deus nos proporciona, na mesma fé que sugere o Papa Francisco: “um Sínodo não é outra coisa senão explicitar o que diz a “Lumen Gentium”: a totalidade do Povo de Deus é infalível, porém, deve se explicitar com a fé” (Francisco, 2021).

Referências

  1. ANTUNES DO NASCIMENTO, Fabio. Paróquias sem párocos, é possível? Em: < https://amerindiaenlared.org/contenido/11717/paroquias-sem-parocos-e-possivel/> acesso em 11 de novembro de 2021.
  2. Código de Direito Canônico
  3. CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERCIANO. Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência do episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007.
  4. CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERCIANO. Documentos do CELAM. Rio de Janeiro, Medellín, Puebla, Santo Domingo. São Paulo: Paulus, 2005.
  5. http://www.ihu.unisinos.br/609569-vimos-com-frequencia-seminaristas-que-parecem-bons-mas-muito-rigidos-a-rigidez-e-um-de-nossos-grandes-problemas-constata-francisco. Em 25 de maio de 2021
  6. INSTITUTO SUPERIOR DE PASTORAL. A vueltas con la parroquia: balance y perspectivas. Navarra: Verbo Divino, 2008.
  7. PAPA FRANCISCO, “Evangelii Gaudium”. Acta Apostolicae Sedis, vol.105, n°12 (2013).
  8. PAPA FRANCISCO. Comemoração Do Cinquentenário Da Instituição Do Sínodo Dos Bispos. Em: < https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-sinodo.html> acesso 11 de novembro de 2021.
  9. PAULO VI, Papa. CARTA APOSTÓLICA – APOSTOLICA SOLLICITUDO: ISTITUZIONE DEL SINODO DEI VESCOVI PER LA CHIESA UNIVERSALE. Em: < https://www.vatican.va/content/paul-vi/es/motu_proprio/documents/hf_p-vi_motu-proprio_19650915_apostolica-sollicitudo.html> acesso em 11 de novembro de 2021.
  10. VaticanNews. Papa: clericalismo é uma perversão da Igreja. https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2018-08/papa-francisco-igreja-clericalismo-jovens-sinodo.html> acesso 11 de novembro de 2021.

 Notas

  1. Scholas Occurrentes: É uma organização de direito pontifício, que nasceu em Buenos Aires por iniciativa do então Arcebispo Jorge Bergoglio, hoje Papa Francisco. É uma rede internacional que une estudantes de todo o mundo ao redor de um programa educativo baseado na arte, no desporto e na tecnologia. O objetivo é promover a integração social e a cultura do encontro e da inclusão nas escolas.
  2. Economia de Francisco: Com o intuito de iniciar um processo de mudança global para que a economia do presente e do futuro seja mais justa, fraterna, inclusiva e sustentável, o Vaticano promove o evento “Economia de Francisco” (The Economy of Francesco). O encontro será realizado de 19 a 21 de novembro de 2020. E reunirá jovens economistas e empresários de vários lugares do mundo. Devido à pandemia da Covid-19, a atividade internacional que teria sido presencial em Assis, na Itália, em março, foi reagendada e adaptada para a modalidade online. Por isso, a participação se dará pelo portal francescoeconomy.org.
  3. Piattaforma Laudato Si: A Plataforma de Iniciativa Laudato Si do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral é um espaço no qual instituições, comunidades e famílias podem aprender e crescer juntas, enquanto caminhamos em direção à sustentabilidade plena, no espírito holístico da ecologia integral. Nós calorosamente convidamos você a se juntar a esta comunidade. Sua “cultura, experiência, envolvimento e talentos” únicos são necessários em nossa jornada em direção a um amor maior por nosso Criador, um pelo outro e pelo lar que compartilhamos. (LS 14).